Sua História lhe define


Uma frenagem brusca, o barulho estridente da borracha sendo dilacerada pelo asfalto. A fumaça cinza libera odor desagradável. As pessoas estão olhando assustadas, mas ninguém movimenta um músculo para fazer algo, talvez fosse o que seu pensamento mais desejasse, mas para ele tudo parecia estar numa velocidade menor. No entanto, seus músculos não eram capazes de se mover, o coração em seu peito, parecia querer se mudar para o estômago. De alguma forma o ar se tornou rarefeito, como se estive subindo além da Termosfera… como seu mundo pode virar de ponta cabeça numa fração de segundos, vivemos numa realidade onde, a história de todos são escritas num livro invisível.
Como se cada momento uma porção de palavras se alinhasse até formar uma frase, é como editar um texto num software, seus dedos se movem sozinhos tocando as teclas de um teclado. Algoritmos controlados por energia entende cada entrada, como se tudo fosse uma bruxaria futurística e, de algum modo, seus pensamentos se tornam informações das quais alinhadas corretamente podem contar uma história.
Diferente da realidade, nosso software da realidade não possui a tecla de backspace. Quisera ele poder voltar algumas frações de segundos e impedir que uma sentença seja escrita. Era tarde demais, não havia mais nada que o homem pudesse fazer, ele já havia previsto o texto como uma sugestão de seu editor ortográfico. É algo imutável, como o próprio tempo, o veículo avançar em sua direção atingindo bem no centro de suas pernas. Você não consegue deixar de olhar, tudo acontece rápido demais, agora seu coração bate tão rápido quando o carro, suas veias se abrem e liberam um intenso fluxo de sangue carregado por todo seu corpo. O cérebro tem seu tempo de resposta, atrasado, não importa mais, apenas aceite o fato do fim, aceitei que a vida termina.
A colisão jogou o corpo para baixo de si, naquele momento não era apenas fragmentos da borracha que soltavam do conglomerado do qual chamamos de pneu. Disseram que aquilo não era possível, mas ele tem certeza do que viu, enquanto o veículo tentava parar, seus braços; pernas e até mesmo sua cabeça; desprendeu do seu corpo como se toda aquela massa fosse feita de gelatina.
Por um mísero segundo suas vísceras pintavam o asfalto, mas em meio a chuva de entranhas, em pleno ar, pode se ver, sua cabeça voar. Em seu rosto catatônico, uma única expressão, tão pouco era dor ou surpresa, mas seus olhos contraídos e acentuação de suas bochechas, com a seus lábios expansivos. Era uma felicidade genuína estampada na sua face, que agora, não passara de uma cabeça sem corpo, sentindo os efeitos da física até ser esmagada pelo asfalto.
Então seu celular vibra em cima da mesa da qual suporta seu computador. Uma breve olhada para a tela digital e os números remetem há seis horas da manhã, as olheiras debaixo de seus olhos, acompanhado das diversas xícaras de café completando o espaço vazio da mesa, lá fora do quarto, a chuva regredia como um prelúdio para o sol. Deixando um bocejo escapar, ele então se levantou da cadeira surrada que rangeu com a ação, desligando o monitor o jovem pegou uma cartela de comprimidos com mais de um quarto do mesmo faltando. Ele ingeriu outra dose e, então, deitou-se no colchão velho e com o lençol cheio de buracos, esperando assim o seu dia finalmente acabar com seus olhos a fechar.
— Você precisa terminar isso no prazo…. — Isso não funciona, refaça… — As vendas esse mês não foram como nós esperávamos… — Olha, temos pessoas publicando livros o tempo todo, a média por vendas de exemplares, são baixas… — Com essa escrita você não vai muito longe… — Isso é lixo, nós não publicamos lixo, agora saia da minha frente…
O personagem central desperta, graças a um feixe de luz intenso do qual, atravessa um buraco que residia naquela parede de hotel velho há anos. Uma breve olhada para o visor trincado de seu celular e o mesmo marcava duas horas da tarde, sentando na cama a trilha sonora, ecoa por dentro das finas paredes do seu quarto. A garota do outro lado gemia tão alto que podia até mesmo se tornar um despertador, se não bastara isso, a cama colidia contra a parede de forma que até ela dance no ritmo da sua música. Ele levantou e caminhou até a geladeira, ao abrir a mesma os ratos se dispersaram do único prato com um pedaço de queijo velho na mesma, não havia lhe restado muito, porém, o suficiente para encher a sua boca numa única mordida. O mau cheiro veio com a abertura da porta do objeto, isso só o fez lembrar do roedor morto atrás da mesma, há semanas. Caminhando para a escrivaninha onde ficara seu computador, abriu a primeira gaveta abaixo do suporte principal, algumas baratas então correram para longe da mão humana que pegara sua carteira preta, totalmente desbotada e rasgada com o tempo. Ao desabotoar o fecho, lhe restara duzentos reais para o mês, retirando uma nota de cinquenta do qual havia várias fitas adesivas presas a mesma.
Ao abrir seu guarda-roupas lhe restara uma troca, com exceção da camiseta rasgada, e a samba canção que vestia, pendurada junta em um cabide. Na parte debaixo, seus sapatos sociais com meias pretas dentro do mesmo, retirando a camiseta jogando-a em cima da cama, vestiu então seu último terno, comido pelas traças e cheirando a excremento de barata. Ao se vestir de forma decente, o rapaz deixou o minúsculo quarto de dois cômodos, trancando a porta. Uma vez no corredor toda a acústica das putas do prostíbulo ecoava, caminhou alguns passos para longe do quarto, até o velho, e único, elevador daquela espelunca.
Ao apertar o botão do qual chamara o elevador, a porta do quarto quarenta e sete abriu-se, novamente aquele gordão de ternos caros, suando como um porco no rolete, deixou o mesmo. Mesmo frequentando esse lugar, saia toda vez de cabeça empinada, nosso personagem já havia cruzado com o mesmo em algumas ocasiões e horários diferentes, — encarando-o —, aquele barril de chope Viquingue nunca, sequer uma vez, retribuía o favor, e em todas elas, descia usando a escada. Isso sempre fez pensar: como ele ainda é tão gordo, já que toda a semana perde calorias no quarto quarenta e sete e, sempre desce mais de três andares pela escada. Pensar que após aquele dia, nunca mais veria, só então duas semanas, descobriria, que o gordo faleceria devido a um câncer.
Ainda parada na porta cotando o dinheiro do qual acabara de ganhar, a jovem era, de fato, a mais bonita de todo o prostíbulo. Seus cabelos negros, tanto quanto a sua aura irradiava, talvez ela fosse um bom personagem, que em algum momento renderia algum desenvolvimento, toda história precisa de uma pitada de realidade. Bem ela de fato era um contraste da realidade, — o personagem central —, não cansava de admirar seus belos olhos, esmeraldas, eles sempre tinham algo a mais para contar, sempre informações sinceras, que de pouco em pouco, contavam uma história bela.
— “O que você está olhando, seu pervertido?” — então entrou batendo a porta do quarto, no momento que as portas do elevador se abriram.
No térreo funciona um bar, na verdade, apenas um disfarce para esconder toda a sujeira dos andares acima. — “Olha! Se não é a aberração do quarto cinquenta e três. As garotas estão reclamando de você ficar encarando-as nos corredores. Se você quer fuder, apenas pague e pronto, não haja como um pervertido. Se isso continuar, vou passar a cobrar taxa extra de sua estadia”. — O protagonista pensou em responder, mas seu rosto nunca sequer teve forma em sua mente, olhar para o mesmo remetia a vislumbrar, uma folha de sulfite com a silhueta de um cabeça desenhada. No lugar dos olhos; boca; nariz e outros elementos do rosto, estava penas um ponto de interrogação. O bar estava lotado de bêbados e seres sem importâncias, portanto, uma bela analisada no local, percebera que todos ali possuíam o rosto de interrogação.
Lá fora tudo estava movimentado como sempre, até porque, milhares de pessoas passam pelo centro diariamente, e numa avenida tão antiga quanto a própria cidade, não era para ser diferente. O sol da tarde de primavera brilha forte, o suficiente para incomodar os olhos do nosso protagonista, por isso, sempre andava de cabeça baixa tentando se locomover espremendo cada espaço possível na multidão. Na faixada do hotel, mendigos compartilhavam cobertores, bebidas, alimentos, ou o que mais podiam compartilhar. Não é necessário dizer o quão sujo estão, mas o fedor de urina e azedo se estendia por todo o quarteirão, o que de fato, fazia com que as pessoas, de certa forma, evitassem andar naquela baixada. Por esta ser uma das avenidas mais antigas, talvez até a mais antiga, a maioria dos edifícios a direita, eram prédios tão antigos quanto sua história podia contar. Tudo se resume entre o velho e o moderno, na verdade, ninguém se importa com aquilo que ficou para trás, todos só se interessam para o aqui e o amanhã, de fato, aqueles prédios decadentes tiveram histórias para contar, porém, ninguém para ouvi-las. É por isso que atualmente, os esquecidos, os sem importâncias, os desajustados… se abrigam em comunidades, ninguém dá importância a jornada dos outros.
Ao longe, do outro lado da avenida, tem uma grande praça, que nos tempos de ouro da cidade, funcionava como uma das estações de trem, apenas um resquício da velha revolução industrial, tratada apenas como um museu ao ar livre, donde ninguém se dá ao luxo de apreciar o valor de sua história. Na frente da mesma uma farmácia que sobrevivera ao árduo teste do tempo, fazendo é claro, a única coisa que seres podem para sobreviver, se adaptar. Lá nosso homem de cabelos bagunçados, barba por fazer, e roupas amarrotadas conseguia suas drogas para o mundo compreender. Sentado no banco ainda cheirando a tinta, óleo, olhava catatônico para os diversos veículos que ali passavam todos os dias, o veneno que deixavam escapar de seus escapamentos, se misturavam as poucas árvores que ali restavam, matando-as como se fossem uma dose letal injetada gradualmente na sua corrente sanguínea. — Lamento! Peço que, por favor, me perdoe. — Não sabia ao certo se era a voz do protagonista murmurando isso, ou apenas, seus pensamentos ecoando na minha cabeça, mas o que sei é… essa frase nunca saiu da minha mente.
O movimento ao redor parecia não ter fim, conforme a visão se afasta do nosso personagem, o horizonte contribui como uma cena dramática de um filme qualquer. Aquela mesma rotina, naquela mesma cidade distorcida, num mundo programado, feito, para parecer com a nossa realidade. Ele se pergunta, se os rostos de interrogação são protagonistas de suas próprias histórias, e se são, o que ele se torna? Talvez, todos sejam apenas ramificações, esperando que um diretor as abras e leia seu guião. O tempo passou, o sol trocou com a lua e nosso personagem só deu conta do mesmo quando um vento frio de primavera soprou por dentro de seu paletó, arrepiando os pelos do seu braço, as drogas adquiridas na farmácia já estava pela metade, ainda em transe ele refez seu caminho de volta para o hotel. Que agora dava lugar a outras categorias de clientes, estes dos quais, não eram do tipo que apenas queriam beber e trepar.
Como é no meio literário, as trevas são o presságio do medo, não devais contar mentiras, pois, aqui já, o terror, o dominara. Durante o caminho, os editores fizeram questão de acentuar a gravidade da situação, com uma canção fúnebre bem acentuada tocando de fundo. Porque a polícia não fazia nada a respeito daquela situação? Por que eles recebiam suborno, o pagamento, as pernas das garotas do andar de cima abertas. Desta vez ele decidiu subir pelas escadas, já que o elevador estava ocupado rolando uma festa particular de viciados em heroína, a trilha sonora fúnebre agora deu lugar a um som pesado, gritos intensos de garotas, impossível diferenciar o prazer do pavor. Apenas ignore, não se envolva com essas pessoas, aquela voz na cabeça te dizendo o obvio. Ao chegar no quarto andar, a garota do, quarenta e sete, ao lado de outras duas prostitutas, colocavam alguns homens para dentro do recinto, os olhos do protagonista cruzaram com da mulher de cabelo obsidiana, no seu rosto uma falsa alegria plantada. Diferente dos músculos faciais, seus olhos nunca mentiam, todo mundo tem uma história para contar, não importa a veracidade da mesma, aquele olhar conta muitas histórias.
Ele entrou no seu quarto trancando a porta no processo, enquanto o computador iniciava, a parede de trás do mesmo não parava de vibrar, no topo da mesma o papel perdia a cola graças a vibração. Por baixo da mesma, a parede contava mais histórias sobre o quarto, e também sobre todo o prédio. Mofo nas paredes, marcas de sangue, fungos e até mesmo covil para insetos. No editor de texto a página em branco esperava o personagem central preenchê-la, mas aquilo provavelmente não funcionaria, ninguém queria ouvir aquela história, as pessoas não pagam pela verdade, elas preferem mentiras. Sem mover um músculo, o autor, ficara ali parado olhando fixamente para o monitor, talvez, procurando alguma bela mentira contar.